domingo, agosto 27, 2006

Recordações de tempos que já não voltam

Existem duas características que definem a minha família alentejana, a primeira é que os nossos reencontros são sempre feitos a uma mesa, a outra consiste na tradição de se contarem histórias passadas, cuja moral desaparece sempre em detrimento da piada. Nestas ocasiões, as histórias acerca das partidas que o meu avô pregava e das suas imensas namoradas abundam, tornando-se inevitável o olhar de saudades estampado no rosto de quem já não o vê há alguns anos, aliás, muitas dessas histórias terminam com a frase “ele que venha cá um dia destes,....mas porque é que não há-de ele cá vir?!”.
Depois de mais uma jantarada familiar, rica em comida e em risos que se fazem ouvir por toda a casa, sinto uma profunda nostalgia e dou-me conta de como nada volta a ser o mesmo e que o tempo não volta atrás.
A verdade é que o meu avô nascido e criado em Santa Margarida da Serra não voltou a colocar lá os pés depois da morte da sua mãe. Na vila, propriamente dita, só vem para funerais.
Muitos dos seus companheiros de juventude não percebem que ele não venha até Grândola para os visitar, que não queira passar uns dias nas imensas casas que lhe são postas ao dispor, alguns deles chegam mesmo a dizer que ele esqueceu os amigos.
O meu avô já explicou diversas vezes o motivo deste afastamento físico da sua terra natal, no entanto, só nestes últimos dias percebi realmente o que ele quer dizer.
Desde que nasci que as nossa férias eram passadas na aldeia, na casa da minha bisavó, todos juntos, eu, os meus avós, meus pais e um tio, irmão do meu avô, que tinha costume de ir almoçar connosco.
Hoje, vou a uma aldeia morta. Todas as pessoas das quais guardo as mais ternas e bonitas recordações morreram. Os cheiros da minha infância desapareceram. E o tempo, esse, não volta atrás.
Esta semana visitámos a aldeia e como sempre faço, todos os anos, fui sozinha até à antiga casa da minha bisavó. A mesma casa que me acolheu todos os Verões, onde reforcei o meu sentido de família, está em ruínas. Olhei, voltei a olhar e preferi ignorar o presente e relembrar o passado. Acabei por não ter coragem de espreitar lá para dentro, através de uma janela entreaberta, mas deu para perceber que as silvas já tinham ocupado o seu lugar na nossa antiga sala. Fecho os olhos e vejo a casa tal e qual ela era, quer seja por fora, quer seja por dentro. Sem me dar conta o passado entrou pela minha vista a dentro, fazendo-me lembrar da minha bisavó a cozer restos de tecidos para fazer tapetes e a enchutar os cães da vizinha, que na hora do almoço sempre apareciam à nossa porta para comer alguma coisa. Recordo-me de me sentar ao seu lado na taberna do meu tio a ver a televisão ou até do seu modo de andar, a coxear ligeiramente à minha frente. Lembro-me do meu espanto de cada vez que a via tirar o lenço preto da cabeça e debaixo deste surgirem longos cabelos, os quais eram penteados à beira da cama com o maior dos cuidados. É também impossível não me lembrar da última vez que a vi naquele lugar. Ela estava sentada à beira da sua cama, apoiada em algumas almofadas. Nessa altura a doença já lhe pesava e no momento em que me ia despedir dela, uma vez que ia voltar para Lisboa, ela beija-me, abraça-me e pede-me, a chorar, que não viéssemos embora. Se existem imagens que jamais esqueceremos, então esta será uma delas. Acho que me impressionou ver a minha bisavó, aquela mulher forte que não tinha por hábito encher-nos de beijos nem abraços mas que nos conseguia fazer sentir amados na mesma, assim, frágil, à minha frente.
Depois existiam os bailes, dos quais eu era a grande companheira do meu avô. Íamos juntos até ao casão ouvir os acordionistas os quais, na maioria dos casos, eram amigos dele. O engraçado dos bailes é que eu só queria dançar com o meu avô porque era o único que eu não pisava, todos os outros que se atrevessem saíam de ao pé de mim com o calçado marcado do pó dos meus sapatos. Lembro-me que quando o ar era preenchido pelos ritmos mais rápidos o mulherio tratava de chamar o meu avô para a dança, pois este, para além da fama tinha também o proveito de ser o melhor dançarino do local.
Depois do baile, voltávamos para casa e no caminho eu sempre tinha medo de um sapo enorme que insistia em parar na pedra que se encontrava na esquina da casa. Lembro-me da “chuva” que fazia sempre que íamos à Fonte Branca, causada pelo meu avô que fez tradição do acto de encher o coxo de água para depois no-la atirar para cima quando menos esperávamos. Ele também inventou para mim o baloiço. Foi o melhor baloiço que já conheci e não haverá outro que se aproxime dele. Era completamente rústico pois consistia num grosso ramo de árvore no qual o meu avô me balançava. Hoje essa árvore já não existe.
Lembro-me de ter corrido tudo o que queria, de subir e descer montes com uma alegria inexplicável, de tratar dos animais que mais gostava, do cheiro do leite das ovelhas, de ver pirilampos em pleno breu, de ser realmente feliz só porque estava livre, sem ter de me cuidar por causa de carros ou de pessoas menos honestas. Hoje quase não existem animais na aldeia nem sequer companheiros para as brincadeiras infantis.
Lembro-me de como ia religiosamente à taberna do meu tio, à hora de almoço, comprar o sumo Foca e de como este me enchia os bolsos de amendoins para eu comer no caminho para Lisboa. Acho que o sumo Foca acabou, porém, continuo a receber os amendoins.
Lembro-me de vir para a porta e olhar o infinito de montes que se dispunha na minha frente, nas luzes das aldeias longínquas, no imenso céu estrelado que parecia cair em cima de nós de tão cheio que se encontrava de estrelas. Não passei lá mais noites nenhumas mas decerto que o céu continua a brilhar da mesma forma, tal como quando eu era menina.
Lembro-me das vizinhas da minha bisavó, com as quais eu conversava imenso e que me satisfaziam o desejo de pegar nos seus coelhos e de as ajudar a alimentar os animais, sempre lembrando-me para ter cuidado não me fosse eu sujar. Lembro-me de uma delas, a Antónia, ter tido uma televisão e como a sua casa era mesmo ao lado da nossa, eu passar alguns serões encantada por lá, encarando tal objecto com o mesmo entusiasmo de novidade como ela o tinha feito.
Lembro-me de acompanhar o meu pai na caça aos pássaros, de apanhar figos de pita com o meu avô e de chegar a casa e ajudar a prepará-los juntamente com a minha mãe e avó. Lembro-me da matança dos porcos feita pelos meus tios, pai e avô, do cheiro dos chouriços posteriormente feitos e deixados debaixo da chaminé.
Lembro-me das imensas histórias contada em redor da lareira ao mesmo tempo que se bebia um chá e se fazia uma torrada. Nunca mais comi torradas com aquele sabor, feitas na própria lareira. Lembro-me de vir ajudar a buscar água ao chafariz, dos banhos no balneário público, onde eu morria de medo dos aranhiços cavaleiros, sendo protegida pelos meus pais. Lembro-me da Jóia, a única cadela em que eu confiava e que se recordava de nós sempre que nos via, apesar de só lá irmos de ano a ano. Lembro-me dos caracóis que vinha comer com os meus pais à vila depois de um dia de praia, de como a minha amiga de infância já esperava à minha porta às 8h da manhã para irmos brincar, de como fugíamos de um perú que a avó dela tinha e que insistia em perseguir-nos para nos picar, do medo que eu tinha dos imensos cães que lhe guardavam a casa e até de entrarmos vestidas numa piscina isolada no meio de montes.
Tenho mais uma imensidão de lembranças da minha infância passada na aldeia mas é impossível contar tudo. Hoje, vou aquela aldeia e não a reconheço, fico apenas triste por ver que a casa onde fomos tão felizes se encontra destruída e dou por mim a pensar que “o tempo não volta atrás,..”.
Lamento que o meu irmão não tenha passado por estas mesmas experiências.
Ele não conheceu nenhuma destas pessoas nem viveu o ambiente fantástico daquela altura. É demasiado novo, estando a construir as suas próprias memórias que serão bem diferentes das minhas.
Já ouvi dizer umas quantas vezes que não devemos voltar aos sítios onde fomos felizes e penso que talvez essa seja uma verdade mas não consigo deixar de me sentir um pouco cobarde se o fizer, se virar costas definitivamente aquela aldeia e talvez por isso mesmo continue a ir até lá.
Acho que o pior de voltar a um sítio desses é ver que o que para nós tem tanto significado para outros é totalmente indiferente, como por exemplo, a enorme pedra onde me sentava, ao Sol, a ler e que alguém tratou de partir. Para mim nunca foi só uma pedra, era mais que isso, era o MEU lugar, como pode alguém ter ignorado isso?! Esqueço-me que não posso ser dona nem de pessoas nem de lugares, só consigo possuir recordações e as que tenho devem servir-me para a vida.
Quanto ao meu avô, ele continuará sem vir cá e ao contrário do que possam pensar ele não esqueceu os amigos, antes pelo contrário, por se lembrar tanto deles é que não pretende voltar. Não existe necessidade de voltar a um local apenas para ver casas vazias e lugares que foram ocupados por amigos actualmente mortos. Aquela aldeia, vila, amigos e aventuras tem-nas ele bem guardadas no seu coração e na sua mente e quanto a mim, parece-me que não poderiam estar em melhor lugar.

1 Comments:

Blogger Unknown said...

Parabéns.Gosto muito!

12:22 da tarde  

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