sexta-feira, junho 30, 2006

E agora, um bocadinho de vida alheia

Continua-me a espantar a capacidade extraordinária, que todos acreditamos ter, de julgar a vida dos outros.
Da nossa vida evitamos falar, principalmente quando as coisas não correm bem, mas a vida alheia é para nós um filme a ser seguido atentamente, episódio a episódio, com direito a reposições e análise de takes.
Como dizia a canção infantil “o fruto do meu vizinho, parece melhor que o meu,..” e como tal, há que encontrar algo podre de forma a equilibrar a balança, entre o que possuímos e o que parece que os outros possuem.
De forma resumida, dentro do que a minha falta de síntese permite, conto uma história que retracta isso mesmo.
Uma das mulheres da minha família parecia ter o casamento perfeito. Sempre os vi juntos e com atitudes que aparentavam grande cumplicidade. À cerca de um ano, o seu marido morreu de ataque cardíaco. Imaginei a tristeza que ela deveria sentir, fui ao velório, onde tentei disfarçar a minha falta de palavras, que desejava que a conseguissem confortar.
Sempre me lembro dela como uma mulher forte e, a sua atitude nessa noite, apenas confirmou essa mesma ideia. Cheguei ao pé do seu colo e disse a primeira coisa que me ocorreu (estranha mania que mantenho e que pretendo em breve superar): “Não sei o que lhe dizer. Lamento muito e não sei explicar o quanto.” A estas palavras ela respondeu acenando com a cabeça, dando um ligeiro sorriso e dizendo que me percebe perfeitamente.
Passado alguns dias, soube-se que a morte do seu marido tinha sido devida ao uso exagerado de Viagra. Nesse mesmo dia, ela começou a receber telefonemas de uma mulher que lhe perguntava por ele, dizendo que estranhava os dias em que ele estivera ausente da sua casa, da sua cama, desejando saber o que se passava.
Em curto espaço de tempo, ela percebeu que andava a ser traída e que muito do dinheiro que haviam amealhado tinha sido gasto com outra mulher.
Nessa altura, o luto desapareceu e deu lugar à desilusão e à raiva. O pior, dizia ela, era ele não estar vivo para lhe poder pedir explicações, desabafar tudo o que lhe ia na alma, toda a raiva ficaria guardada para sempre, pois jamais conseguiria obter as respostas desejadas.
Ao contrário do esperado ela não se afogou em mágoas. As mulheres mais velhas, desta família, são todas demasiado fortes para isso e ela, como bom exemplo, tratou de refazer a sua vida. Passou a ir ao ginásio, a viajar, tomar conta do neto, ajudar nas exposições da irmã e encontrou, até, um namorado.
Ora, nesta última parte é que as más línguas começam a actuar em força.
As mesmas pessoas que a apoiaram, quando souberam do que se passou, são as mesmas que agora, por trás das costas, lhe dão facadinhas gentis, disfarçadas de preocupação verdadeira.
Ouvem-se sussurros a dizer que ela mal esperou que o marido esfriasse, que está doida, entre outras acusações feitas sob a forma de tema de conversa do jornal das 20h.
Admiro-a profundamente por diversas razões. Acho de grande coragem que após tal desilusão ela tenha conseguido arriscar outra relação, ter conseguido confiar em outro homem. Depois, é admirável que ela ignore todo o falatório que sabe existir, por onde quer que passe.
Quando achou que era a altura própria, tratou de dar a notícia às pessoas que para ela realmente contavam e, como se fosse uma adolescente, esperou a opinião destes. Quem realmente se preocupa com ela tinha apenas uma resposta possível “Se te faz feliz,...força!!”.
Claro que também contribuí com o meu comentário, que na altura foi ela ser 50 anos mais velha que eu, arranjar namorado e eu permanecer solteirona. Confesso que as viagens da terceira idade me começaram a parecer estranhamente interessantes, nesse dia.
Tudo isto faz-me crer, ainda mais, na teoria de que por mais anos que passemos com alguém, jamais a iremos conhecer totalmente. Na verdade, já não sei muito bem em que acreditar no que toca a relações amorosas, só acho que cada um sabe da sua e mais nada.
Persistem várias dúvidas sobre o certo, o errado, as desculpas, as respostas, as diferentes situações, os atenuantes e os perdões, porém, uma única certeza, que é a de que julgar compete apenas aos directamente envolvidos nas situações e jamais aos que espreitam de fora, pelo seu buraco da fechadura, tentando disfarçar que é a preocupação que os impulsiona e não o desejo de assistir, em lugar privilegiado, à desgraça alheia.