segunda-feira, junho 05, 2006

Deseja Casar?!

Ontem os meus avós fizeram 51 anos de casados.
Na verdade, estão há mais tempo juntos na vida, do que o estiveram individualmente. Lembrarmo-nos de um é lembrarmo-nos do outro.
Para quem não os conhece posso garantir que, neste caso, os opostos se atraíram.
O meu avô é o típico alentejano, todo ele é calma. Passou a sua infância a pregar partidas a toda a gente, partidas essas, ainda hoje célebres.
Veio fazer a tropa em Lisboa e depois voltou para a sua aldeia, a qual lhe pareceu demasiado pequena, após ter “alargado as vistas” pela cidade.
Desistiu de ceifar, de tomar conta das ovelhas, de achar que a vida do campo era a que devia seguir. Ele queria conhecer mais, agora que sabia que existia outro mundo fora daquelas searas e montes.
Arranjou emprego em Lisboa, viveu sozinho muito tempo, sendo que perdeu a conta ás namoradas que teve. Embora não goste de falar muito sobre isso, conta quem sabe, que não havia rabo de saia que lhe escapasse.
Aos 30 anos casou com a minha avó.
Muito vivido e com um humor acutilante, ainda hoje é um conquistador do sexo feminino. Transparece sabedoria através dos seus olhos cinzentos e do seu tom de voz tranquilo.
Incapaz de incetar um assunto directamente, utiliza vários meios para chegar ao tema que realmente interessa, tendo menos sucesso em interlocutores cuja paciência seja escassa.
Quando preciso falar da minha infância, uma das pessoas sempre presentes, é o meu avô.
Com ele aprendi tantas coisas que nem consigo enumerar. Aprendi como fazer de um galho de um sobreiro o meu baloiço particular, que conseguimos fazer chover quando estamos numa fonte e temos um coxo ao nosso dispor, que devemos ser honestos tanto connosco como com os outros, que a vida deve ser aproveitada ao máximo porque só nos é dada uma oportunidade para isso. O meu avô incutiu o sentido de humor em mim, de tal maneira que o uso até quando a tristeza tenta dominar.
Aos 80 anos, não consegue ver uma criança e não se meter com ela. As suas brincadeiras sempre foram, e ainda são, do género de provocar, de fazer cócegas, de nos obrigar a reagir, a procurar os nossos limites, o que já deu origem a discussões várias com a minha avó, porque para ela as crianças são quase como porcelana, para as quais ela só tem beijos e abraços disponíveis.
Ele é uma das pessoas que me faz desejar que a eternidade fosse possível, porque ele ama a vida e eu amo-o a ele.
Uma das coisas das quais tenho imensa pena é que, os filhos que eu venha a ter, não tenham oportunidade de o conhecer. Lamento que ele não lhes vá dar chocolates ás escondidas nem os acompanhe pelas ruas antigas de Lisboa, ensinando-lhes o nome de cada uma delas, ao mesmo tempo que lhes conta histórias da sua vida.
Em relação à minha avó, posso dizer que o primeiro namorado que teve foi o meu avô, apesar das garantias de que quando era “rapariga nova” não lhe faltavam pretendentes.
Tinha muito pouca experiência de vida, sendo que o que conhecia devia-se grandemente ao número largo de livros que lia, que lhe colocaram sonhos na cabeça, os quais ela nunca procurou realizar.
Trabalhou poucos anos, ficando em casa após o nascimento do meu pai, o qual é a luz dos seus olhos.
O seu maior sonho era viajar por vários países, coisa que nunca aconteceu.
Passou tempos conturbados, em que tremia cada vez que lhe batiam à porta, com medo de que a PIDE fosse buscar o seu marido.
Suportou telefonemas e até visitas de apaixonadas do meu avô, que vinham ver o que ela tinha de especial para ter sido escolhida para sua esposa.
É meiga, característica que se destaca numa família cuja maneira comum de demonstrar afecto é gozando uns com os outros.
A sua fama de cozinheira de mão cheia ainda é referida nos jantares de família, em que se conta como os seus pratos deliciavam as visitas.
Sempre fui mais ligada ao meu avô, mais por uma questão de compatibilidade de feitio do que outra coisa, mas o ano passado a minha avó ficou gravemente doente e então percebi que só damos valor ás pessoas quando as estamos quase a perder.
Compreendo agora a visão da minha avó, percebo que a vida que ela desejava ter nunca aconteceu, que o seu refúgio foram os livros e a família que constituiu.
Sei que o meu avô é o grande amor da sua vida, do qual, ainda hoje sente ciúmes.
Ontem foi dia de dar parabéns aos “noivos” e de dizer piadas sobre o tempo em que se “suportam”, pois ninguém quer fazer uma reflexão séria sobre o que é viver 51 anos com outra pessoa.
Talvez eles não o façam porque o passado já foi deixado para trás à muito, talvez nós não o façamos por medo de tentar olhar tão longe, para o futuro,...